A verdadeira batalha diária do Cristão se dá nos
locais e nas circunstâncias que, infelizmente, não são evidenciados pelo impraticável ensinamento
religioso.
Desde os primeiros passos na liturgia cristã, e
na própria cultura secular supersticiosa, há um incentivo em se preocupar com
as ameaças espirituais exteriores; com o "capeta" que está à espreita
aguardando o momento de se apoderar da pessoa.
É claro que a possessão demoníaca é uma realidade
espiritual; Jesus teve, por diversas vezes, de lidar com esse tipo de situação.
Entretanto, quando se observa o contexto em que Paulo trata sobre o confronto
espiritual do cristão, percebemos que este se dá de modo bem menos misticista e
muito mais prático.
As regiões celestiais, descritas pelo apóstolo em
Efésios 6, só podem ser compreendidas tendo em mente o que o mesmo pregador
afirma em Galátas 5 e em vários outros textos - todos apontando para um
enfrentamento prático das hostes celestiais do mal ao invés de uma tratativa
supersticiosa com ares de espiritualidade.
Aliás, é sempre assim, por exemplo, que o próprio
Jesus trata essa questão, vide o texto de Mateus 15, quando, ao discorrer sobre aquilo
que efetivamente contamina o homem, o Mestre deixa bem claro que não é o
caminho do homem, nem suas tradições, que são as fontes de sua impureza - mas
exatamente tudo aquilo que procede do interior da criatura é que tem o poder de
corrompê-la.
Aqui nos é revelada a necessidade de olhar para
dentro e perceber que qualquer guerra nas regiões celestiais acontece no
ambiente chamado consciência. É por isso, ainda, que, nos termos de Romanos 12,
o entendimento necessita ser objeto de progressiva inconformidade com o mundo mediante uma transformação
contínua.
Desse modo, não há motivo para se ocupar achando
que o mundo exterior é o campo e o alvo de combate do cristão, já que, no Evangelho,
percebe-se justamente o oposto: é principalmente no homem interior que se opera
a atuação maligna, bem como a transformação desta numa conduta humana maldosa.
Ora, o mal exterior não pode ser taxado somente como a causa da
conduta maligna e pecaminosa do ser humano. Na realidade, o mal externo, em
grande parte das vezes, é a razão e o instrumento utilizado pelo próprio Deus
para aperfeiçoamento dos seus. O apóstolo Tiago chega a dizer que o fato de
passar por provações - experimentando o dia desagradável - deve ser encarado
pelo cristão com bastante alegria pela oportunidade de, nele, poder crescer nas
virtudes do Evangelho.
Esse fato se confirma em Jó: todo o mal que
adveio sobre ele havia sido, primeiramente, permitido por Deus. E, ao final de seu
livro, percebe-se um Jó não simplesmente reto diante do Senhor, mas além
disso um homem que tem a ousadia de dizer que agora conhece o seu Deus por contemplá-lO.
Jó é o exemplo de quem, diante do advento do mal nas regiões
celestes de seu homem interior, reagiu com fé e esperança, permitindo-se ser
moldado pela adversidade ao contrário de aceitar que esta o levasse a profanar a
retidão de seus caminhos em Deus.
Já Caim não agiu da mesma maneira; quando Deus o
exortou acerca da necessidade de dominar o seu desejo perverso, que nascera
pela inveja homicida em relação a seu irmão Abel, aquele, mergulhado em toda
insanidade produzida pelo ímpeto descontrolado em vaidade, recebeu a indução do
mal, transformando-a em malignidade através da união de sua ação com o intento
gerado em seu ser. Desse jeito ocorreu o primeiro homicídio.
Portanto, é olhando para si, à luz do Evangelho,
que se identifica o inimigo e se vence as batalhas cotidianas - e tudo isso é feito,
como já dito, de modo totalmente prático. A vitória acontece quando
o mal induzido é retribuído com o bem superabundante advindo da Graça. Assim,
se alguém tem seu rosto esbofeteado, o outro lado é, então, oferecido; se
alguma coisa é tomada injustamente pelo ladrão, oferece-se a ele o restante; se alguém se faz inimigo de outrem, faz-se daquele o sujeito de seu Amor.
Aliás, no Amor, e apenas na prática dele, as batalhas
espirituais são concretamente definidas, enfrentadas e vencidas. Já na pseudo-espiritualidade, o diabo se torna o bode expiatório, em quem a culpa absolutamente recai, numa tentativa de se retirar a responsabilidade pelas ações malignas do agente humano praticante.
Nesse sentido, é muito mais fácil, por exemplo, dizer que o responsável pela má convivência conjugal é um encosto, macumba ou semelhantes, do que chamar sobre si o peso de seus atos falhos, identificando os erros e os corrigindo em compreensão e perdão mútuos.
E quanto à oração?! Esta, sem dúvida, se apresenta como uma boa arma desde que utilizada como um reflexo da bondade que se quer efetuar. A oração e a ação - no e para o bem - se completam. Portanto, é muito melhor uma oração piedosa, que
esquadrinha o ser até suas dimensões mais profundas e obscuras, do que
palavras
valentes de ordem que, no fim, estão esvaziadas de qualquer significado
para o aperfeiçoamento; é extremamente mais eficaz o exercício extravagante do
bem do que o credo em rituais
mágicos automáticos que não produzem nenhum efeito na consciência.
Leia Hebreus, capítulo 9, do verso 9 ao 14, e compreenda que somente aquilo que produz efeito na consciência do praticante é que tem significância na Graça! Porque, de sacrifício, Cristo já se ofertou como única oferta digna e suficiente para saciar os anseios do Pai por Justiça. Desse modo, oração como sacrifício para que Deus dê a "vitória" ou expulse o "mal" é mais uma espécie de desresponsabilização do agente, que ao invés de buscar aperfeiçoar o entendimento, prefere uma autoimposição inócua.
Esse tipo de oração-sacríficio é mais um tipo de maldade com aparência de piedade, é desculpa, é arrogância, é paganismo, é estupidez!
Portanto, e este é o ponto chave, tratar o assunto batalha espiritual com uma visão mistificada não é somente um desvio teológico: é, na realidade, ocultar das pessoas o ponto primordial no qual se deve concentrar todos os esforços a fim de que as batalhas diárias sejam vencidas, que é exatamente a consciência de cada indivíduo.
Só se pode lutar essa batalha do jeito correto retirando o instrumento de atuação maligna - que é o próprio ser - das mãos do salteador e, consequentemente, subjugando-o à prática da vontade divina por intermédio do exercício do Amor.
Por isso só se vence o mal com o bem - e aqui, mais uma vez, é o bem praticado, de maneira natural nas relações corriqueiras da vida, como Jesus fez. O resto é conversa fiada, que mais confunde do que discerne; que retira o
olhar do indivíduo de seu real inimigo, substituindo seu confronto real pelo enfrentamento de uma superstição imaginária.
Em Cristo, que a Graça revele o quanto o mal abundante, por Sua misericórdia que transforma consciências, pode proporcionar o bem despretensioso e superabundante na vida enquanto esta é tão somente vivida.