segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Olhar ao avesso




Desde criança, sempre gostei de datas comemorativas como o Natal e o Ano Novo, pois momentos assim são frequentemente uma boa oportunidade para a reflexão. Não que seja o ideal discernir-se apenas algumas vezes por ano – muito pelo contrário. Entretanto, minha humanidade me leva a preferir que tais instantes sejam os motivos ensejadores do autoexame do que os dias maus, pois estes podem se apresentar por meio de situações irreversíveis, deixando tão somente o remorso e a frustração como marcas daquilo pelo qual já nada mais pode ser feito.

Aliás, olhar para si tem sido uma tarefa raríssima neste tempo; nunca foi tão difícil encontrar em alguém interesse para efetuar juízo sobre si mesmo.

Mas por quê? O que impede o olhar da verdade de confrontar nosso eu? Por que resistimos tanto a isso?

Não tenho todas as respostas; contudo observo algumas coisas.

A primeira delas é que vivemos a era da exteriorização da verdade em detrimento de sua interiorização. Em grande parte das vezes, sabemos o que precisa ser realizado, até mesmo somos hábeis em explicar o modus operandi, mas não conseguimos aplicar como realidade prática em nós mesmos.

O problema disso é que a verdade só é sustentada quando não é fruto de uma teorização lógica, mas de uma internalização por intermédio de seu exercício.

Por exemplo, buscar ter somente o discernimento correto acerca de determinado assunto, teologicamente falando, não torna a pessoa detentora da verdade, porque esta não pode ser literalmente expressada por aquele que até tenta exterioriza-la com uma explanação, porém com ela não se fundiu ao ponto de deixar de falar sobre o que se sabe para dizer o que se é.

A mensagem do Evangelho só é consolidada quando se faz oriunda de quem a experimenta em sua própria carne, de quem vive exercitando pessoalmente o que se professa de tal modo que, para um expectador externo, já não há mais distinção entre o que seria fé e obras, pois ambas foram unificadas como expressão de vida do mensageiro.

Mas o que isso tem a ver com a autorreflexão? Ora, na medida em que aquele que propaga a boa nova aos outros antes o faz intensamente a si, através do seu próprio julgamento pela Verdade.

A pessoa que se abre para Cristo não tem além dEle nenhum outro dogma, muito menos medo de perder suas referências pelo confronto de todos os seus achismos com a Sua Verdade. Para ser franco, quem tem esse temor não passa de um religioso sustentado por crenças engessadas em uma sistemática precária e fundamentadas em uma ortodoxia automatizada; todavia, sem qualquer tipo de alicerce em Jesus e sem tê-lO como único modelo capaz de modificar tudo o que se pensa/pratica, ainda que isso signifique a negação de toda sua ideologia teológica.

E aqui, quando me refiro à ideologia, o faço no seu sentido mais cru: o revestimento da realidade por uma roupagem convenientemente modelada que, se for preciso, ignora a verdade em nome de uma busca pela “coerência sistêmica”.

Entretanto, os que assim procedem se esqueceram do que Jesus fala em Mateus 7: “(...) aquele que ouve as minhas palavras e as pratica”, ou do capítulo 2 da epístola de Tiago, ou ainda do conselho de Paulo no capítulo 4 de I Timóteo: "(...) Exercita-te pessoalmente na piedade”, dentre inúmeras outras passagens do Novo Testamento.

Não se trata de um pragmatismo alienante; contudo, a chave de todo o ensinamento de Jesus está na ação!
Já vi pessoas defendendo conscientemente o contrário: a teorização/exteriorização do ensino do Evangelho principalmente pela via da oratória ou de qualquer outra linguagem que não o próprio testemunho expresso por obras. Esses ou não entenderam nada do que leram da Bíblia ou são mal intencionados, mais amantes da conveniência teológica do que de Jesus.  

O Autoexame qualifica o julgamento necessário do cristão, pois submete todo o discernimento ao olhar da misericórdia; faz com que o julgador se coloque no lugar do outro antes de repudiar ou aceitar determinada conduta.

Esse exercício introspectivo naturalmente eleva o bom senso a patamares inatingíveis pelo mero conhecimento conceitual do que pode se ter como “certo e errado”; é o que distingue a inteligência teórica da sabedoria prática.

Por outro lado, querer realizar uma viagem introspectiva sincera sem antes olhar e, por fé, confiar absurdamente na Graça Divina é o mesmo que caminhar rumo à “terra dos pesadelos”. Porque não há outra coisa que se pode encontrar no interior do humano além de podridão crua.

Antes de olhar para si, faz-se necessário olhar para o Seu Amor. Essa ordem deve ser respeitada. Do contrário o que restará será um existencialismo deprimente, que retira totalmente o propósito da vida humana ou que, quando menos, o reduz a objetivos medíocres, em um convite ao suicídio existencial. 

Aliás, não é outra coisa que se percebe neste mundo cada vez mais secularizado e, consequentemente, mais infeliz.

As densas trevas do interior devem ser dissipadas com a luz do Evangelho. Essa jornada só pode ser realizada segurando firmemente nas mãos de amor e consolo do Mestre. A sinceridade, sozinha, pode ser o veneno automedicado por aquele que se aventurou pelos vales sombrios de seu próprio coração sem qualquer amparo.

Em Cristo, toda imperfeição é compensada pela Sua perfeição; cada tropeço ensejará o Seu perdão; onde abundou o pecado, superabunda a Sua graça.

Essa é a essência da relação entre a perversidade humana e a manifestação do Amor Divino, que nos conduz à sua Paz, não por se ignorar o real estado corrompido do ser, mas por saber-se perdoado e, portanto, impelido pela gratidão a testificar na própria vida o Seu testemunho.  

Nisso reside o alívio, já que, mesmo em meio a tribulação exterior ou flagrado pela imperfeição interior, o que prevalece é a confiança nAquele que perdoa com uma graça infindável e que coage o ser, por Seu Amor irresistível, a buscar agir de acordo com Sua doce e maravilhosa vontade.