Desde criança, sempre gostei de datas comemorativas como o Natal e o Ano Novo, pois momentos assim são frequentemente uma boa oportunidade para a reflexão. Não que seja o ideal discernir-se apenas algumas vezes por ano – muito pelo contrário. Entretanto, minha humanidade me leva a preferir que tais instantes sejam os motivos ensejadores do autoexame do que os dias maus, pois estes podem se apresentar por meio de situações irreversíveis, deixando tão somente o remorso e a frustração como marcas daquilo pelo qual já nada mais pode ser feito.
Aliás, olhar para si
tem sido uma tarefa raríssima neste tempo; nunca foi tão difícil encontrar em
alguém interesse para efetuar juízo sobre si mesmo.
Mas por quê? O que
impede o olhar da verdade de confrontar nosso eu? Por que resistimos tanto a
isso?
Não tenho todas as
respostas; contudo observo algumas coisas.
A primeira delas é que
vivemos a era da exteriorização da verdade em detrimento de sua interiorização.
Em grande parte das vezes, sabemos o que precisa ser realizado, até mesmo somos
hábeis em explicar o modus operandi, mas não conseguimos aplicar como realidade
prática em nós mesmos.
O problema disso é que
a verdade só é sustentada quando não é fruto de uma teorização lógica, mas de
uma internalização por intermédio de seu exercício.
Por exemplo, buscar ter
somente o discernimento correto acerca de determinado assunto, teologicamente
falando, não torna a pessoa detentora da verdade, porque esta não pode ser
literalmente expressada por aquele que até tenta exterioriza-la com uma
explanação, porém com ela não se fundiu ao ponto de deixar de falar sobre o que
se sabe para dizer o que se é.
A mensagem do Evangelho
só é consolidada quando se faz oriunda de quem a experimenta em sua própria
carne, de quem vive exercitando pessoalmente o que se professa de tal modo que,
para um expectador externo, já não há mais distinção entre o que seria fé e
obras, pois ambas foram unificadas como expressão de vida do mensageiro.
Mas o que isso tem a
ver com a autorreflexão? Ora, na medida em que aquele que propaga a boa nova
aos outros antes o faz intensamente a si, através do seu próprio julgamento
pela Verdade.
A pessoa que se abre
para Cristo não tem além dEle nenhum outro dogma, muito menos medo de perder
suas referências pelo confronto de todos os seus achismos com a Sua Verdade.
Para ser franco, quem tem esse temor não passa de um religioso sustentado por
crenças engessadas em uma sistemática precária e fundamentadas em uma ortodoxia
automatizada; todavia, sem qualquer tipo de alicerce em Jesus e sem tê-lO como
único modelo capaz de modificar tudo o que se pensa/pratica, ainda que isso
signifique a negação de toda sua ideologia teológica.
E aqui, quando me
refiro à ideologia, o faço no seu sentido mais cru: o revestimento da realidade
por uma roupagem convenientemente modelada que, se for preciso, ignora a
verdade em nome de uma busca pela “coerência sistêmica”.
Entretanto, os que assim
procedem se esqueceram do que Jesus fala em Mateus 7: “(...) aquele que ouve as
minhas palavras e as pratica”, ou do capítulo 2 da epístola de Tiago, ou
ainda do conselho de Paulo no capítulo 4 de I Timóteo: "(...) Exercita-te
pessoalmente na piedade”, dentre inúmeras outras passagens do Novo Testamento.
Não se trata de um
pragmatismo alienante; contudo, a chave de todo o ensinamento de Jesus está na ação!
Já vi pessoas defendendo conscientemente o
contrário: a teorização/exteriorização do ensino do Evangelho principalmente
pela via da oratória ou de qualquer outra linguagem que não o próprio
testemunho expresso por obras. Esses ou não entenderam nada do que leram da
Bíblia ou são mal intencionados, mais amantes da conveniência teológica do que
de Jesus.
O Autoexame qualifica o
julgamento necessário do cristão, pois submete todo o discernimento ao olhar da
misericórdia; faz com que o julgador se coloque no lugar do outro antes de
repudiar ou aceitar determinada conduta.
Esse exercício introspectivo
naturalmente eleva o bom senso a patamares inatingíveis pelo mero conhecimento
conceitual do que pode se ter como “certo e errado”; é o que distingue a
inteligência teórica da sabedoria prática.
Por outro lado, querer
realizar uma viagem introspectiva sincera sem antes olhar e, por fé, confiar
absurdamente na Graça Divina é o mesmo que caminhar rumo à “terra dos pesadelos”.
Porque não há outra coisa que se pode encontrar no interior do humano além de
podridão crua.
Antes de olhar para si,
faz-se necessário olhar para o Seu Amor. Essa ordem deve ser respeitada. Do
contrário o que restará será um existencialismo deprimente, que retira
totalmente o propósito da vida humana ou que, quando menos, o reduz a objetivos
medíocres, em um convite ao suicídio existencial.
Aliás, não é outra coisa que
se percebe neste mundo cada vez mais secularizado e, consequentemente, mais
infeliz.
As densas trevas do
interior devem ser dissipadas com a luz do Evangelho. Essa jornada só pode ser
realizada segurando firmemente nas mãos de amor e consolo do Mestre. A
sinceridade, sozinha, pode ser o veneno automedicado por aquele que se
aventurou pelos vales sombrios de seu próprio coração sem qualquer amparo.
Em Cristo, toda
imperfeição é compensada pela Sua perfeição; cada tropeço ensejará o Seu
perdão; onde abundou o pecado, superabunda a Sua graça.
Essa é a essência da
relação entre a perversidade humana e a manifestação do Amor Divino, que nos
conduz à sua Paz, não por se ignorar o real estado corrompido do ser, mas por
saber-se perdoado e, portanto, impelido pela gratidão a testificar na própria
vida o Seu testemunho.
Nisso reside o alívio,
já que, mesmo em meio a tribulação exterior ou flagrado pela imperfeição
interior, o que prevalece é a confiança nAquele que perdoa com uma graça infindável
e que coage o ser, por Seu Amor irresistível, a buscar agir de acordo com Sua doce e
maravilhosa vontade.